Após a abertura da 3ª Bienal da Bahia em Salvador, aconteceu na tarde desta sexta, 30, a abertura oficial da Bienal no interior do Estado. O cenário foi a Fazenda Fonte Nova – a 30 km de Feira de Santana -, onde o poeta baiano Eurico Alves viveu e encontrou inspiração para escrever.

Transgredindo os modelos tradicionais, a abertura aconteceu em forma de ocupação artística da fazenda,  e começou com a realização da 50ª edição do projeto Terra, capitaneado por Juraci Dórea, artista e idealizador da identidade visual da 3ª Bienal da Bahia.

 

Foto: Alfredo Mascarenhas
Escultura de couro e madeira foi confeccionada durante a abertura. Foto: Alfredo Mascarenhas

 

O projeto Terra consiste na criação de esculturas e pinturas pelo sertão nordestino e acontece desde a década de 1980, mas agora a primeira obra desta edição, a escultura  Homenagem à Fazenda Fonte Nova, além de integrar o acervo da Bienal, traz um aspecto diferente. “A obra reforça a relação de memória entre a Casa Museu Eurico Alves, localizada na fazenda, e o projeto Terra”, complementa Dórea.

 

Foto: Alfredo Mascarenhas
Homenagem à Fazenda Fonte Nova, escultura de Juraci Dórea. Foto: Alfredo Mascarenhas

 

Outra atividade realizada foi a leitura dos poemas Elegia para Manuel Bandeira, de Eurico Alves, e Escusa, de Manuel Bandeira. Com todos em volta de uma fogueira, em um clima típico do interior, o primeiro poema foi lido voluntariamente pela professora universitária Antônia Rera,  era um convite feito pelo poeta baiano ao pernambucano para ir a Feira de Santana. Sensibilizado, Manuel Bandeira responde com o poema Escusa, recitado no momento pelo artista visual Paulo Bruscky.

 

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O artista Paulo Bruscky durante a leitura do poema Escusa, de Manuel Bandeira. Foto: Alfredo Mascarenhas

 

“Eurico convidou Manuel para Feira de Santana, a 3ª Bienal da Bahia convida todos para o interior, foi pensando nisso que escolhemos esses poemas”, diz Bruscky. Já para Maria Eugênia Boaventura, filha de Eurico Alves, abrir a casa da família para visitação pública pela primeira vez foi uma experiência de troca. “É um prazer compartilhar com as pessoas um pouco da trajetória do meu pai, e não apenas isso, mas seu interesse pelas questões físicas e culturais do sertão nordestino”, pontua.

 

Bienal no interior

Diferente de outras propostas curatoriais, a 3ª Bienal da Bahia não se concentra apenas na grande capital, sua itinerância reforça a cultura existente em cada parte da Bahia, é o que pensa o Secretário de Cultura do Estado da Bahia, Albino Rubim. “A Bienal vai até a Bahia profunda, com isso, reconhecemos que a cultura não está apenas em Salvador, mas sim em cada canto do Estado. Esse reconhecimento é imprescindível para a descentralização da produção artística e cultural na Bahia.”, comenta o Secretário.

Fernando Santos, estudante de Letras da Universidade Federal de Feira de Santana (Uefs), confessa que se deslocou do centro da cidade até a fazenda apenas para reconhecer a importância de um evento como esse. “Sou apaixonado por artes, mas, mesmo se não fosse, viria aqui.  Há poucas atividades como essa por aqui, seria um desperdício não aproveitar, ainda mais pela visibilidade que traz para a cidade”, pontua.

 

Leia o poema Elegia para Manuel Bandeira, de Eurico Alves:

ELEGIA PARA MANUEL BANDEIRA

Estou tão longe da terra e tão perto do céu,
quando venho de subir esta serra tão alta …

Serra de São José das ltapororocas,
afogada no céu, quando a noite se despe
e crucificado no sol se o dia gargalha.
Estou no recanto da terra onde as mãos de mil virgens
tecem céus de corolas para o meu acalanto.
Perdi completamente a melancolia da cidade
e não tenho tristeza nos olhos
e espalho vibrações da minha força na paisagem.

Os bois escavam o chão para sentir o aroma da terra,
e é como se arranhassem um seio verde, moreno.

Manuel Bandeira, a súbida da serra é um plágio da vida.
Poeta, me dê esta mão tão magra acostumada a bater nas teclas
da desumanizada máquina fria
e venha ver a vida da paisagem
onde o sol faz cócegas nos pulmões que passam
e enche a alma de gritos da madrugada.
Não desprezo os montes escalvados
tal o meu romântico homônimo de Guerra Junqueiro
Bebo leite aromático do candeial em flor
e sorvo a volúpia da manhã na cavalgada.
Visto os couros do vaqueiro
e na corrida do cavalo sinto o chão pequeno para a galopada.

Aqui come-se carne cheia de sangue, cheirando a sol.

Que poeta nada! Sou vaqueiro.
Manuel Bandeira, todo tabaréu traz a manhã nascendo nos olhos
e sabe de um grito atemorizar o sol.

Feira de Santana! Alegria!

Alegria nas estradas, que são convites para a vida na vaquejada,
alegria nos currais de cheiro sadio,
alegria masculina das vaquejadas, que levam para a vida
e arrastam também para a morte!

Alegria de ser bruto e ter terra nas mãos selvagens!

Que lindo poema cor de mel esta alvorada!

A manhã veio deitar-se sobre o sempre verde.

Manuel Bandeira, dê um pulo a Feira de Santana
e venha comer pirão de leite com carne assada de volta do curral
e venha sentir o perfume de eternidade que há nestas casas de fazenda,
nestes solares que os séculos escondem nos cabelos desnastrados das noites eternas

venha ver como o céu aqui é céu de verdade
e o tabaréu como até se parece com Nosso Senhor.

 

Em resposta ao convite, Manuel Bandeira escreve Escusa:

ESCUSA

Eurico Alves, poeta baiano,
Salpicado de orvalho, leite cru e tenro cocô de cabrito.
Sinto muito, mas não posso ir a Feira de Sant’Ana.

Sou poeta da cidade. Meus pulmões viraram máquinas inumanas e aprenderam a respirar o gás carbônico das salas de cinema.
Como o pão que o diabo amassou.
Bebo leite de lata. Falo com A., que é ladrão.
Aperto a mão de B., que é assassino.
Há anos que não vejo romper o sol, que não lavo os olhos nas cores das madrugadas.

Eurico Alves, poeta baiano, Não sou mais digno de respirar o ar puro dos currais da roça.