Uma procissão sai do Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM-BA), no Solar do Unhão, com direção ao Passeio Público, no Campo Grande. O percurso parece pequeno, mas ele será percorrido de uma forma não linear. Esta não é apenas uma andança pelas ruas da cidade: ela será permeada de arte, cultura e história.

O movimento faz parte da performance da artista portuguesa Luisa Mota, que será realizada no dia 29 de maio, durante a programação de abertura da 3ª Bienal da Bahia. Na entrevista a seguir, a artista – que está em residência na Bahia para a produção de sua obra – fala sobre os trabalhos realizados em diferentes países, o processo de produção e sua relação com as novas tecnologias. Confira!

Artista ressalta que o baiano é "um povo bem mais colaborativo". Foto: Alfredo Mascarenhas

Artista ressalta que o baiano é “um povo bem mais colaborativo”. Foto: Alfredo Mascarenhas

Você estudou em Londres e já expôs em cidades da Europa. Existe uma relação entre a produção artística de lá e a do Brasil?

Eu estudei e vivi em Londres durante 11 anos. Agora, em 2013, graduei no mestrado em escultura da Royal College of Art. Estou em São Paulo desde agosto, quando vim para o Brasil. Fiz um projeto para a Verbo, na Galeria Vermelho, e uma performance que se conecta ao trabalho que estou fazendo aqui e que também já tinha continuidade no período que eu estava em Londres, com a minha linha de pensamento.

Para o meu trabalho, em particular, é interessante essa mudança de local porque é uma resposta e um reflexo da própria cultura. O meu trabalho é uma performance que acontece na rua, então tem consequências, existe para além do que há na rua, que são várias coisas, entre elas pessoas, carros, regras e o tempo.

Então, em alguns momentos, você nem sabe o que vai acontecer durante a performance.

Isso. Eu tenho 30 anos, não sou tão nova mas, ao longo da minha carreira, isso será mais presente: o lugar onde está sendo feito e a receptividade do trabalho, porque ele se insere na cultura – já que existe na rua e trabalha com as pessoas de cada lugar, e isso é um aspecto muito interessante. A produção de arte no Brasil, Portugal e Inglaterra, onde eu tenho exposto bastante, é diferente, por causa da própria estrutura da sociedade e de como as coisas funcionam.

Na Inglaterra, em termos de negociação, com certeza alguns trabalhos que eu fiz foram mais complicados, porque eles têm de ser negociados para existirem. Eu tenho que negociar com as pessoas que participam, quais os termos em que participam e se elas querem participar. Tenho que convencê-las e seduzi-las. Lá, esta preparação toda costuma ser exaustiva, enquanto aqui eu sinto um povo bem mais colaborativo. As pessoas gostam de se envolver com as coisas e de entregar desta maneira. É outra cultura. E para o tipo de trabalho e linha de pensamento que eu tenho, ela funciona muito bem porque eu já posso começar em outro nível e desenvolver o trabalho mais a fundo. É o que tem acontecido desde que eu cheguei ao Brasil.

Em relação às pessoas que assistem à performance, houve algum fato que te marcou ou alguma reação que você não esperava do público em algum destes lugares que você fez?

Esta performance que eu vou apresentar aqui já foi feita em Londres e em São Paulo, e foi diferente nos dois lugares. Em Londres, a performance começou em uma área na zona leste, que tem muitas comunidades, bairros de paquistaneses e pessoas oriundas de ex-colônias, e depois entrou pela City [centro financeiro e histórico localizado na região conhecida como Grande Londres]. Foi muito interessante como eles também se inseriram na City, onde o trânsito se tornou outra coisa. Era a procissão de homens invisíveis, porque eles são metálicos e entram em um espaço mais futurista, enquanto no outro bairro era uma coisa bem mais de protesto e de cunho religioso. Isso altera de acordo com o local em que ele está e à receptividade de cada um.

Em São Paulo, foi muito engraçado porque eu fiz na [avenida] Paulista – que é onde acontecem todas as manifestações – e o trabalho se perdeu, de certa maneira. Ele existiu, mas era mais uma entre várias manifestações. Enquanto em Londres a performance parou o trânsito e eu fui parada pela polícia (embora eu já tivesse avisado), em São Paulo ela se inseriu muito mais, porque as pessoas já estavam habituadas. Ei não sei se esta é uma questão de parar o trânsito. Por mais que eles sejam os homens invisíveis, não são de todo invisíveis. Eles brilham também, com as luzes e tudo o mais. Em São Paulo, eles se integraram mais, as pessoas pensaram que fosse mais uma das várias manifestações.

Qual o material que você usa para produzir o figurino da performance?

Isso é um material que foi desenvolvido pela Nasa e, hoje em dia, é usado mais para estufa interna. Também tem outras versões dele, que são os cobertores de bombeiros para tapar o fogo.

Este é o material que vai ser utilizado aqui em Salvador, na performance dos homens invisíveis?

Exatamente, mas o que eu estou fazendo aqui em Salvador é um desenvolvimento desta performance. De certa maneira, o meu trabalho é quase como uma grande novela de personagens, com vários tipos de simbolismo culturais, e os homens invisíveis são apenas um tipo deles. Em outros projetos, eles aparecem segurando outros personagens, que são as esculturas, fazendo o trabalho duro, segurando a cortina, e é por isso que são homens invisíveis, a mão de obra que permanece nos bastidores.

Este trabalho da procissão é um novo projeto, onde eles existem como protagonistas e não secundários. Isso quer dizer que há um enredo imenso de personagens, alguns recorrentes, que vão se desenvolvendo no tempo, quase como uma novela, mas em um universo meu. Não é a Globo, mas é o meu, Luisa Mota.

Para a performance daqui, haverá um desenvolvimento a mais, com essa procissão e também outros momentos. A procissão será o desencadeamento de eventos que vão acontecer: começará no MAM e irá até o Passeio Público, mas em um percurso mais longo, onde eles encontrarão com outros personagens e eventos pela cidade. Haverá três ações conjuntas, como uma cadeia.

Além dos homens invisíveis, você tem outro trabalho, que  utiliza uma seda indiana onde estão impressas várias imagens de mulheres, misturando arte e religiosidade. Ele também será realizado aqui em Salvador?

Estes personagens, em particular, ainda são meio incertos e não formatei exatamente quem vai participar. Mas esta ideia da religiosidade está muito presente e a figura da santa é uma personagem que existe muito fortemente no meu trabalho. Ultimamente, há uma discussão acerca do simbolismo feminino, do arquétipo da mulher, a partir do qual se desenvolvem vários arquétipos. Não é só um símbolo para mim, pois pode haver dois arquétipos relacionais, como a mulher e a água, a mulher e o homem e por aí vai.

Há esta mulher, que é a santa, e várias versões dela, como a mulher deusa. Este trabalho é um tecido de 23 metros com várias imagens de mulheres santas, que eu já produzi dentro do meu universo artístico, como também fotografei. São imagens que já fiz em trabalhos anteriores e que são reimpressos, como a pomba-gira. Tudo é reciclado e refeito para intensificar o simbolismo. O que eu crio não são objetos, mas artefatos que são vividos, usados. Vários objetos também restarão desta performance que, como foram vividos, usados e estão carregados da energia da ação, se tornarão novos artefatos.

E que podem ser utilizados em sua próxima performance.

Exatamente. Ou também poderão ser utilizados, em termos religiosos, para a veneração.

Você sempre filma as performances e publica em sua conta no Vimeo. Como é a relação da sua arte com as novas tecnologias?

Minha relação não é tanto com a internet, mas com a imagem, a documentação e a captação do evento. Antes das performances, eu fazia fotos e também organizava eventos. Poderia acontecer na rua, mas eu tentava criar uma imagem e essa leitura visual é que me interessa. Eu me interesso no agora e no que é vivido, e como isto é representado. Todos os meus trabalhos têm certo entourage de filmagem ou de captação. Depois, há outro trabalho que se envolve na performance, e acaba sendo o set de filmagem. E esse aspecto de mostrar os bastidores de uma construção faz parte do trabalho. Há muitos trabalhos que eu faço que você não sabe o que é. É o que acontece com as performances na cidade, e acho que vai funcionar incrivelmente em Salvador. Estou super entusiasmada porque minha performance pode se perder na cidade e, aqui, as pessoas são muito autênticas. Esta é uma palavra perigosa, mas eu quero dizer que elas se conhecem, são muito soltas, muito à vontade. Elas são vivas. Estou ansiosa para começar.

Essa parte do vídeo e da imagem complementa ou faz parte da obra?

Tudo é uma obra só mas, em certos projetos, a filmagem está bem visível; em outros, ela está mais escondida e você só vê a performance. Para a Bienal, eu vou usar dois cameramen e dois fotógrafos, e isso vai acontecer na abertura, que vai ganhar uma estrutura fílmica. É uma estrutura de captação, que vai além da documentação. A internet é uma plataforma, e para mim é quase um storyboard, que é como eu uso o Vimeo: captar um monte de ações que vão criando ligações. É lá que estão o universo concretamente, o livro, as capas, os documentos, o registro. Se você começar a ver o link [do Vimeo], meus trabalhos são todos personagens, episódios, enfim, é uma novela. E só está começando. Eu estou produzindo há 10 anos. Daqui a 30 anos será uma coisa bem mais complexa.

Como você acha que o seu trabalho vai acontecer na abertura da Bienal da Bahia?

Acho que o meu trabalho se integra muito bem com este formato e também com o jeito baiano de fazer as coisas acontecerem. A expectativa é que vai ser incrível. O meu trabalho não tem como correr mal. Sendo esta a 3ª Bienal – e a última ter sido fechada nas condições que foi, pela Ditadura –, tem certo peso esta abertura. Como eu estou aqui há alguns dias, também sei que as pessoas daqui têm grande expectativa sobre o que esta Bienal vai ser. O que eu estou construindo é um pequeno pedaço disto.

Por Thaís Seixas